03/06/2011 VALOR ECONÔMICO
Autor(es): Alberto Carlos Almeida | De São Paulo
Antonio Palocci exerceu durante 2010 o cargo de deputado federal. No mesmo ano, a empresa dele faturou R$ 20 milhões. Consta que um deputado federal fica em Brasília às terças, quartas e ao menos na manhã de quinta-feira. Descontando-se esses dias, os fins de semana e considerando-se tanto o recesso da Câmara quanto o fato de Palocci não ter tirado férias nem aproveitado os feriados em 2010, isso significa que o ministro da Casa Civil trabalhou na consultoria exatos 165 dias, ou 45% do ano. Uma pessoa normal, tomando-se somente os dias úteis e excetuando-se 30 dias de férias, trabalha 242 dias, ou 66% dos dias do ano. Se a empresa de Palocci faturou R$ 20 milhões, isso significa que ele ganhou, em média, R$ 121 mil para cada dia de trabalho. Seria interessante que o Ministério Público, a Justiça, os economistas, universidades etc. procurassem estudar e investigar em que condições um deputado federal consegue ganhar R$ 121 mil por dia no exercício do mandato. Se não houver nenhuma ilegalidade nisso, a conclusão desse levantamento seria útil, ao menos, para os 513 deputados que iniciaram seus trabalhos em 2011. Afinal, não temos nada contra o enriquecimento por meios legais. O próprio Palocci poderia dar palestras para os deputados cujo título seria: "Como ganhar honestamente R$ 121 mil por dia, mesmo sendo deputado federal".
Aliás, mais um pouco e Palocci poderia figurar na lista da revista "Fortune" intitulada The World"s Most Powerful Celebrities, muito bem posicionado. Palocci ganhou um pouco menos que Kate Moss em 2010 e mais ou menos a mesma coisa que a tenista Serena Williams. O ator que ficou célebre com o seriado "House", Hugh Laurie, foi batido com facilidade pelo nosso deputado-fortune-celebridade.
A falta de transparência acerca de como Palocci conseguiu faturar tanto em 2010 cria para o governo um problema sério. Na semana passada, o senador Clésio Andrade retirou sua assinatura de um requerimento de CPI para investigar a consultoria de Palocci. Antes disso, Anthony Garotinho ressurgiu das cinzas com apoio da bancada religiosa e impediu, ameaçando convocar Palocci para esclarecimentos na Câmara, a distribuição do kit anti-homofobia. O que esses dois casos revelam é que, no momento, as denúncias em torno do ministro mais importante de Dilma são a peça-chave para se obter concessões do governo. Se houver mais coisa já descoberta e não revelada, ou para ser descoberta ainda, as concessões vão continuar, tanto as mais visíveis, que são divulgadas pela mídia, quanto as menos visíveis, como liberação de gastos que dizem respeito diretamente à vida dos políticos.
Palocci foi escolhido o ministro todo-poderoso de Dilma. José Dirceu foi o mesmo para Lula de 2003 até 2005. Quem é todo-poderoso e exerce seu poder não deve deixar, como se diz na gíria política, o rabo de fora. Dirceu e Palocci deixaram. É interessante que Lula venha agora socorrer Dilma. Ambos começaram seus respectivos governos da mesma maneira: foram muito duros em face das demandas dos políticos. Tinham que ser. Lula precisava de ajustes fiscais em 2003 e Dilma precisa em 2011.
Dilma e Palocci têm sido duros com os políticos porque os dois sabem que não podem abrir a torneira dos gastos públicos. A grande questão é como gerenciar o ciclo econômico-eleitoral. Lula agiu racionalmente em 2010, fazendo o que fazem os presidentes, independentemente de coloração partidária, no Brasil e no mundo: conduziu a economia de tal maneira a aumentar o bem-estar da população com a finalidade de vencer as eleições. No mundo político, o errado e irresponsável é não fazer isso. Imagine-se um presidente que seja austero no ano eleitoral e que isso resulte na derrota de seu partido. Trata-se de um completo absurdo político. Esse é o limite do jogo democrático e é por isso que Winston Churchill afirmou que a democracia é o pior sistema político, com exceção de todos os outros. A democracia e seu ciclo eleitoral criam incentivos para que o governo, nos anos eleitorais, gaste mais, não aumente juros e não faça nenhuma mudança que traga o risco de ter algum impacto negativo sobre a capacidade de compra dos eleitores. Repito que fazer o contrário disso é irresponsabilidade política. Assim, o que Lula fez em 2010 é inteiramente legítimo, aceitável e compreensível nos termos do embate político.
Se o ano eleitoral é de expansão, o ano imediatamente seguinte é de contração. O exemplo mais notável desse fenômeno foi o governo Lula em 2003. Ele combinou aumento de juros com aumento da meta de superávit primário. Para sobreviver politicamente, Lula não apenas adotou a política econômica de Fernando Henrique, contrariando tudo o que defendera a vida inteira, mas a aprofundou. Ser responsável no ano eleitoral é abrir as torneiras e ser responsável no primeiro ano de governo é fechá-las. O primeiro ano de governo é quando o bem-estar dos eleitores é sacrificado em benefício do ajuste nas contas públicas. Dilma também tomou em 2011 a mesma decisão de Lula em 2003. A principal manifestação dessa decisão é a dureza com que ela e Palocci vêm tratando os políticos e suas demandas: deputados não são recebidos, nada de liberação de verbas, lentidão na nomeação para o segundo e terceiros escalões, condução com mão-de-ferro das nomeações para cargos-chave etc. É inteiramente compreensível que Palocci não receba os políticos. Se o fizer, terá que dizer "não". Entre dizer "não" e não receber, o governo vem preferindo o segundo.
Dilma e Palocci têm que dizer "não" porque Lula gastou muito em 2010. Seria mais fácil para o governo, a partir de agora, com Palocci fraco, passar a gerenciar publicamente, sem críticas a Lula, a expectativa do mundo político. É preciso afirmar em alto e bom som que nos anos eleitorais se gasta muito para, em seguida, no ano imediatamente após as eleições, reduzir drasticamente os gastos. É preciso assumir com clareza essa verdade do jogo político. O Poder Executivo precisa persuadir os integrantes do Poder Legislativo de que em 2011 as demandas dos deputados não serão atendidas, ou, se forem, o serão na margem. Aliás, Lula pode ajudar nesse esforço. Ele é o líder inconteste que quer o sucesso de sua sucessora.
José Dirceu e Palocci puderam ser duros em 2003 porque não tinham em suas costas o passivo dos anos de ocupação de poder. No Brasil, graças à inoperância da Justiça, político sem denúncia em seu currículo é somente político que nunca ocupou o poder. Após oito anos de governo do PT, não se pode afirmar que Palocci não tenha mais passivo de denúncias e escândalos. Isso poderia ser verdade em 2003, mas não é mais em 2010. Eis a consultoria que lhe rendeu em 2010 pelo menos R$ 121 mil por dia trabalhado. A dureza fiscal de que o governo precisa não poderá mais contar com a dureza política que até pouco tempo atrás Palocci ostentava. Dilma precisa de um substituto para Palocci, de alguém que tenha condições de dizer "não" para as demandas do mundo político.
A lógica do ajuste fiscal indica que somente Palocci ganha ao manter o posto de ministro da Casa Civil. Dilma perde, o governo perde e o PT coloca em risco o início de um governo cujo presidente não é Lula. Crises vêm e passam. A crise atual não é nada diante do mensalão. O Lula de antes do mensalão era inseguro, duro, não gostava de negociar, ia pouco a público. O Lula de antes do mensalão em nada se parece com o Lula que há duas semanas foi a Brasília se reunir com os senadores do PT e os caciques do PMDB. Ao fim e ao cabo, passada a crise do mensalão, o Lula que saiu dela era mais maduro e muito mais hábil politicamente do que o Lula que entrou. Assim, sabemos que, cedo ou tarde, as crises passam e é isso que veremos com Dilma. A grande questão é a herança da crise. O mensalão abateu José Dirceu e figuras-chave do PT, deixando todo o palco de ação política nas mãos de Lula.
A atual crise abateu Palocci. Ou ele permanece como principal negociador, e para isso o governo terá que ceder no ajuste fiscal, assim como cedeu para Garotinho no kit anti-homofobia, o que pode comprometer o desempenho do governo não apenas em 2011, mas nos anos seguintes. Ou permanece sem poder para dizer "não" e, nesse caso, é preciso ver quem será fortalecido no governo, se será a própria presidente que chamará para si essa responsabilidade, se cairá no colo de seu vice-presidente ou se será uma oportunidade para uma nova estrela petista, para a ascensão de um Paulo Bernardo, Alexandre Padilha ou mesmo para que Guido Mantega aproveite a situação para mostrar que é capaz de ocupar também esse espaço.
Quanto a Mantega, ele tem se destacado negativamente junto aos agentes econômicos, tanto em função de medidas econômicas concretas, quanto, principalmente, por conta de sua comunicação. Dentro do PT, ele nunca foi tão forte. O partido está feliz, porque pode atribuir a ele a adoção de uma nova política econômica, algo que seja petista, e não apenas a execução da política herdada de Fernando Henrique. Em que pesem as aparências e a visão do mercado, Mantega sabe da necessidade da austeridade fiscal. O enfraquecimento de Palocci é uma oportunidade de ouro para que ele ocupe esse espaço. Há muitas outras coisas que podem influenciar nesse desfecho, mas a principal, a enorme força de Palocci, já não é um fator que impeça a ação de Mantega. Quanto a Palocci, é possível que no futuro venha a adicionar uma nova especialidade em sua consultoria: empreendedorismo.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" e "O Dedo na Ferida: Menos Imposto, Mais Consumo". E-mail: Alberto.almeida@institutoanalise.com www.twitter.com/albertocalmeida