19/02/2018 GaúchaZH
O mais recente obstáculo às pretensões do Palácio Piratini de fechar acordo com a União para suspender a dívida por três anos remonta ao início dos anos 2000. Definido pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE) após a criação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o critério usado para calcular as despesas do governo com pessoal livrou gestores públicos de punições, mas acabou se tornando fonte de dor de cabeça para José Ivo Sartori e sua equipe.
Para aderir ao regime de recuperação fiscal, o governador precisa provar à Secretaria do Tesouro Nacional (STN) que compromete pelo menos 70% da receita com os servidores e as parcelas da dívida. Como o cálculo definido pelo TCE há 17 anos desconsidera custos com pensões, auxílios, assistência médica e Imposto de Renda retido na fonte, o percentual fica aquém do exigido. A situação dificulta as tratativas com a STN.
Quando a LRF entrou em vigor, durante a gestão de Olívio Dutra (PT), o TCE ficou responsável por fiscalizar a aplicação da norma, esclarecer dúvidas e definir os parâmetros que, a partir dali, seriam observados nas auditorias. Conduzidas pelo então presidente da Corte, Helio Saul Mileski, as discussões envolveram inúmeros questionamentos técnicos.
Um deles partiu do secretário da Fazenda à época, Arno Augustin. Em ofício de 11 de abril de 2001, o dirigente pedia tempo ao TCE "para continuar a discussão sobre conceitos e critérios", argumentando se tratar de "medida de cautela" diante da "grande complexidade" da lei. No mês seguinte, o contador e auditor-geral do Estado no período, Guiomar Torzecki, discordaria da decisão do tribunal de excluir os desembolsos com pensionistas do cálculo e se negaria a assinar o primeiro relatório de gestão fiscal da era pós-LRF.
Embora Mileski garanta que jamais sofreu pressões de poderes ou órgãos (leia mais na entrevista abaixo), o tema era foco de apreensão nos bastidores.
- Nunca houve nada ostensivo, mas o Judiciário, em especial, tinha muito interesse no assunto, por possuir um quadro funcional numeroso. Os reflexos dessa matéria eram alvo de grande preocupação - recorda um graduado interlocutor do TCE.
De lá para cá, as prestações de contas passaram a ser orientadas por parecer coletivo aprovado no Pleno do TCE em outubro de 2001 e maio de 2002. Ao longo dos anos, a metodologia se mostrou conveniente aos gestores, pois manteve os gastos abaixo dos limites da LRF.
Agora, Sartori quer convencer a Corte a rever o método e a adotar fórmula mais ampla, usada pela STN. A missão não é fácil: com a alteração da regra, estimativas extraoficiais indicam que o Judiciário poderia extrapolar o limite máximo de gastos permitido por lei (veja o quadro). As consequências do descumprimento seriam duras, incluindo o congelamento das folhas de pagamento e a impossibilidade de novos concursos e nomeações.
GASTOS COM PESSOAL EM RELAÇÃO À RECEITA CORRENTE LÍQUIDA (2017)
Órgãos e Poderes
% da receita gasto com
poderes pessoal pelo critério do TCE
%da receita gasto com pessoal pelo critério da STN
Limite legal máximo
Executivo 46,54% 56,04% 49% Assembleia 1% 127% 1,82 % Tribunal de Contas 0,87% 1,1% 1,18%
Judiciário 4,91% 6,17% 5,88% Justiça Melar 0,05% 0,07% 0,12%
Ministério Público 1,57% 1,93% 2% Total 54,94% 66,58% 60%
Para atender à exigência da STN no regime de Recuperação Fiscal, somam-se ainda 6% de gastos com a dívida.
A CHANCE DE O TCE MUDAR O CÁLCULO DAS DESPESAS COM PESSOAL É REMOTA, NÃO SÓ PELOS REFLEXOS NOS ÓRGÃOS E PODERES DO ESTADO. NA PRÁTICA, A ALTERAÇÃO TAMBÉM AFETARÁ A VIDA FINANCEIRA DAS PREFEITURAS E CÂMARAS DO RS.
REAÇÃO NEGATIVA
Assim que o TCE divulgou, na última quinta-feira, documento concluindo que o RS comprometeu 54,94% da receita com pessoal em 2017, o desânimo se abateu sobre técnicos do Estado. Por telefone, a secretária do Tesouro Nacional, Ana Paula Vescovi, mandou avisar que, se o TCE não revisar o cálculo, não haverá negócio.
NÃO ENTENDO QUE TENHA SIDO UM PROCEDIMENTO BENEVOLENTE
HELIO SAUL MILESKI
Ex-presidente do TCE
Presidente do Tribunal de Contas do Estado (TCE) na época em que foi definido o critério usado para calcular o gasto com pessoal nos órgãos públicos do Rio Grande do Sul, Helio Saul Mileski, 73 anos, acompanha o atual debate de longe. Aposentado do TCE, Mileski afirma que a decisão se baseou em estudos técnicos e não resultou de qualquer tipo de pressão.
Como foi a discussão à época?
Quando a LRF entrou em vigência, ninguém sabia ao certo como operar. Era tudo muito novo. Todos tinham de cumprir a lei, mas cumprir como? A meu pedido, o corpo técnico do tribunal elaborou um manual de entendimento, mas logo surgiram mais elementos de discussão. As questões foram resolvidas conforme os fatos foram acontecendo, de forma técnica.
Houve pressões externas para deixar itens de fora do cálculo?
Nada. Ninguém fez pressão, até porque ninguém sabia o que fazer, nem como proceder.
Mas os gestores não tinham receio de sofrer punições?
Todas as administrações, municipais e estadual, achavam que não iam atender à lei em nenhum dos seus aspectos, independentemente dos critérios adotados. E não era só em relação à despesa com pessoal. A lei é rígida, com muitos regulamentos. Há exigências de toda natureza.
O critério adotado pelo TCE não mascara a situação real das contas? Não é benevolente demais?
Não entendo que tenha sido um procedimento benevolente e não acho que mascare. Foi uma interpretação de acordo com a lei, baseada em estudos técnicos. Muitos municípios na época se acharam altamente prejudicados.
O governo Sartori quer mudar o cálculo. O senhor acha que o critério deve ser revisto?
Prefiro não entrar nessa discussão. Eticamente, não me parece adequado.